sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Coluna: Teledramaturgia - A Vida da gente

Os adolescentes Ana (Fernanda Vasconcellos) e Rodrigo (Rafael Cardoso) descobrem-se perdidamente apaixonados, apesar de terem sido criados como irmãos – a mãe dela, Eva (Ana Beatriz Nogueira), e o pai dele, Jonas (Paulo Betti), são casados. Bem na hora que decidem assumir a paixão, Eva descobre que Jonas tinha uma amante e exige o divórcio, iniciando uma guerra que inevitavelmente afeta o jovem casal. Nesse ínterim, Ana descobre que está grávida, e tem a filha, Júlia contra a vontade de Eva. Movida pelo instinto maternal, ela tenta fugir com o bebê, mas sofre um acidente de carro e fica quatro anos em coma. Ao despertar, a jovem decide retomar sua vida, mas descobre que Rodrigo está casado com Manuela (Marjorie Estiano), a própria irmã de Ana, e os dois hoje criam Júlia.

Soa inverossímil, rocambolesco, até mesmo mexicano para você? Mas não no magnífico trabalho de Lícia Manzo à frente do roteiro de A Vida da Gente. Em sua primeira novela como autora titular, ela pega essa premissa que tinha tudo para ser exagerada e constrói um enredo apaixonante, sensível, com personagens profundos e verdadeiros e um pano-de-fundo mais que atual: as novas relações familiares.

Dirigida por Jayme Monjardim (Viver a Vida), a atração ganha força na teledramaturgia nacional em um contexto adverso de sua história. Na última década, as novelas de TV vêm perdendo boa parte de sua audiência para outros formatos e mídias, como a televisão a cabo e a Internet. Vem-se buscando então um novo fôlego para o gênero – muitas vezes, através da quebra de tabus. Walcyr Carrasco inclui um robô com aspecto humano entre os personagens principais de Morde e Assopra, João Emanoel Carneiro joga com os papéis de “mocinha” e “vilã” em A Favorita (2008), Malhação Conectados investe em paranormalidade e fenômenos sobrenaturais... A história de Manzo, por sua vez, vai na contramão dessa tendência: revisita o mais tradicional dos mais melodramas – a luta de uma mulher pelo amor e o direito de ser mãe – com uma roupagem absolutamente moderna e atualizada.

Esse gancho foi muito bem explorado nos primeiros capítulos da história da tenista Ana Fonseca, na interpretação excelente e sem cacoetes de Fernanda Vasconcellos, que protagonizou sequências marcantes ao lado de outras duas intérpretes soberbas: Ana Beatriz Nogueira, na pele de Eva, uma mulher recalcada que deposita em Ana toda a pressão de sustentar a família; e Gisele Fróes, como Vitória, a exigente treinadora que atormenta a mocinha com suas cobranças sem fim. É em torno dessas três mulheres peculiares que tem acontecido os melhores momentos do folhetim. Todos os desgostos que Eva e Vitória infligem a Ana não as vilanizam diretamente. O cuidado do texto, da direção e dos próprios atores evitou ao máximo o maniqueísmo nas personagens, preferindo aproximá-las da realidade. Aos poucos, porém, elas vão se encaixando em sua função inevitável.

A ideia de ambientar A Vida da Gente na capital do Rio Grande do Sul não poderia ter sido mais feliz. A narrativa é incrementada pelas belas paisagens naturais do Sul do Brasil, voltando a atenção para localidades reais do restante do país, que, afinal, não tinham por que ser desvalorizadas em nossa dramaturgia. Para isso contribuem a qualidade da direção, da fotografia e até da trilha incidental.

As interpretações estão praticamente todas sob medida. Pode-se citar a Rafael Cardoso (Rodrigo), natural e convincente em seu primeiro protagonista; a sempre irrepreensível Nicette Bruno, como dona Iná, avó da heroína; Thiago Lacerda, equilibrado como o dedicado médico Lúcio, com quem Ana se envolverá após voltar do coma. E, claro, menção honrosa para Regiane Alves, que está impagável na pele da alpinista social Cristiane, fazendo rir sem recorrer ao pastelão. Paulo Betti, Marjorie Estiano, Sthefany Brito (Alice) e Maria Eduarda (Nanda) também se destacam.

Apesar de tudo, o trabalho de Lícia Manzo escorrega em alguns pontos básicos. O lado dramático da trama está muito carregado, e precisaria de outros núcleos mais “leves” para servir de contrapeso – afinal, estamos tratando de uma novela das 18h. O número reduzido de personagens é outro fator que atrapalha o dinamismo da história, embora isso deva se corrigir a partir da segunda fase.

Páginas da Vida 2, a revanche?

Algo no mínimo curioso de A Vida da Gente são as semelhanças com outra trama global relativamente recente: Páginas da Vida, exibida em 2006 na faixa das 21h. Em seu primeiro mês, a obra de Manoel Carlos repercutiu muito com o drama de Nanda (interpretada pela mesmíssima Fernanda Vasconcellos), que, inesperadamente grávida, era abandonada pelo namorado, Leo (Thiago Rodrigues), e terrivelmente hostilizada pela mãe, Marta (Lília Cabral) De forma similar a Ana, Nanda sofria um grave acidente pouco antes do parto e morria ao dar à luz os gêmeos Clara (Joana Mocarzel) e Francisco (Gabriel Kaufmann). Marta, a avó megera, aceitava cuidar de Francisco, mas rejeitava Clara por ter nascido com síndrome de Down, sendo a menina adotada pela médica Helena (Regina Duarte).

O diálogo entre as duas produções possivelmente não foi só mera coincidência – afinal, elas têm o mesmo diretor de núcleo, Jayme Monjardim. Vale lembrar que o começo de Páginas da Vida foi algo sem precedentes para os folhetins do horário nobre da Globo, mas, a partir da segunda fase, Manoel Carlos perdeu a mão e a trama desandou completamente. Caberá, portanto, a Lícia Manzo aprender com os erros de um autor mais experiente e evitar que seu enredo perca a força após um excelente pontapé inicial.


(por Felipe Brandão)

0 comentários:

Postar um comentário